Apresentação do livro "Crónicas....Retratos que a vida me mostrou"






“Crónicas…..Retratos que a vida me mostrou”
, de Silvério Martins




exmas Senhoras
exmos Senhores
amigos,



pediu.me, não sem um misto de admiração, porque inesperado, o Sr Silvério Martins, que fizesse a apresentação do seu livro “Crónicas…retratos que a vida me mostrou”.
a minha primeira reacção, porque não sou crítica literária, foi de aflição, de imediato, ultrapassada pela amizade de longa data e a cumplicidade mais recente que me ligam a este senhor.
depois, o desafio.
sempre fui uma mulher de desafios. gosto de os experimentar como fonte de enriquecimento pessoal…
foi o caso presente.
resolvi, então, e para se me tornar mais fácil o mister, colocar.me no papel de uma vulgar leitora que tem, entre mãos, um livro.
comecei a folheá.lo e, aos poucos, fui ficando presa às palavras. gosto de digerir palavras.
devagar, muito devagar……………………………
e as crónicas, ou os pequenos contos vívidos, começaram, um a um, a passar pela retina dos meus olhos antes de se fixarem no meu cérebro…

permitam.me, no entanto, um recuar no tempo
permitam.me que vos fale de um Senhor sério, de mão aberta e estendida, que na década de oitenta – quando o conheci – olhava o mundo e as coisas com um olhar sereno, mas vivo, como se a máquina do tempo lhe registasse momentos que só ele vislumbrava. não era homem de discursos. era um homem de registos. prendia.nos com os seus apertos de mão fortes, como quem agarra o mundo, e, olhava.nos para lá das aparências.
nessa altura, não sabia que escrevia…
mas não fiquei surpreendida, quando com ele me cruzei no exercício solitário da escrita.

longe vão os tempos em que os Escritores – ou os Escrevinhadores do real, como ouso enquadrar o meu amigo Silvério Martins ( permita.me que o trate assim ) - fundavam o essencial do seu exercício criador à mesa dos cafés, a escreviver as suas vivências estéticas. creio que Silvério Martins, pelo que me foi dado ler dos seus textos, não fugiu à regra. pelo menos, a regra dos registos.
havia, no entanto, um outro mundo que começava a demarcar.se, sobretudo, a partir dos anos setenta, e com ele, os Autores, um pouco à deriva, passaram a isolar.se, em busca da sua própria identidade.
foi o caso, entre muitos, de um António Lobo Antunes, de um Vergílio Ferreira, de um Herberto Hélder, uma Sophia de Mello Breyner Andresen ou de um Ruy Belo, não há muitos meses relembrados nesta casa e, particularmente, nesta sala, ao ousarem uma ruptura com as correntes literárias dominantes, tendo em conta que as rupturas, enquanto tal, trazem custos elevadíssimos às gerações que ousam continuar esses mesmos processos.
a literatura portuguesa, mormente os Cronistas, atravessa, hoje em dia, um período difícil, controverso e assaz pobre, com o aparecimento massivo de uma literatura light, a que alguns, e, muito bem, classificam de “lixo editorial”.
vivemos e somos uma Pátria dita de Poetas e Escritores. e se esta expressão, vale o que vale, raras são as edições que ultrapassam os mil exemplares de tiragem. isto porque os autores teimam em, mutuamente, se ignorarem, numa voragem intempestiva, agravados por uma crítica medíocre e culturalmente boçal, que pretende reduzir.nos a usufruidores acríticos, atordoados pelo consumismo de uma cultura de massas insuflada pelos canais televisivos, com toda a sua panóplia de mediocridades, nada, mas mesmo nada, inocente…
e a Literatura - todos nós o sabemos - porque formatizada nos discursos do poder e ao mesmo submetida, tem um resumidíssimo espaço de manobra.
resta.nos, no entanto, a persistência de alguns, que, mau grado a desordem geral, teimam em resistir, como actos isolados e residuais, a fim de estremecer o caos.

o meu contacto com a escrita de Silvério Martins, deu.se no Jornal Terra Ruiva, onde partilhamos a mesma página.
é uma prosa densa, melancólica, dorida, imbuída de um humor sofrido e recorrente, em que as imagens e os significantes geracionais se balizam no clacissismo dos seus referentes sintácticos e emotivos. senão, vejamos:
–“…com a voz embargada de emoção disse com dificuldade:
- obrigado senhor! como se chama?
- João.
- João quê?
-João Mais Nada
-E donde é?
- De Muito Longe”- ( pág. 34 )

passagem que, de imediato, me trouxe à ideia, Frei Luís de Sousa – “Romeiro, quem és tu?
-Ninguém!”

muito embora feito de várias crónicas, e, consequentemente, irregular de respiração, o presente título de Silvério Martins é um óptimo pretexto introdutório a uma escrita que se espera mais fecunda em títulos futuros, já que as presentes “Crónicas” demonstram um universo UNO e FECUNDO.
o tempo e os seus limites, a voragem que consome os corpos e os lugares - são elementos constitutivos desse UNO, tão bem descritos na sua terra de origem, Messines, que em algumas crónicas nos aparece como aldeia, para em outras nos sobressair já como vila.
são, também, memórias FECUNDAS de um Homem que, muito embora melancólico, não se deixa sucumbir, nunca, pela rotina dos dias cíclicos e sem lastro visível.
em “Com humor, troquei.lhe as voltas”, págs. 81-82, o autor encena, uma linguagem quase cinematográfica, à semelhança do neo realismo italiano de um “ladrão de bicicletas”, os sinais hilariantes do diálogo estabelecido entre os dois personagens da crónica.
mas é, sobretudo, o vazio existencial, na esteira de Jean Paul Sartre e Vergilio Ferreira, que perpassa ao longo destes 79 textos.

o estar com os seus mais íntimos momentos de reflexão, qual catarse, é marcante em Silvério Martins, e faz todo o sentido, quando, com certos laivos semelhantes à amargura desdramatizada heiderguiana, nos coloca perante o inevitável declínio da vida – “e agora, ao sentir.me na curva descendente da vida, compreendo como o fugaz convívio me transportou por momentos à adolescência fazendo.me lembrar cenas passadas no tempo da minha irrequieta e estouvada juventude, as frustrações que passei, os projectos que idealizei e os sonhos que me deram alento para continuar a viver e a lutar”,pag. 138, como se o tempo fosse, tão só, um outro momento referenciável.

em síntese, se a fragmentação em crónicas foi o caminho escolhido por Silvério Martins para dar corpo a este livro, os seus referentes constitutivos estão claramente definidos nos títulos que apresenta, dando vida a muitos dos seus fantasmas referenciais – o António Sainhas, o Nuno e a Alexandra, o Tóino da Júlia, o Eduardo, o Ti’Júlio, o Armindo Branco, o Ti Henrique da Estação, o Chico Pedro, o acordeonista Teixeira de Martilongo, o Zé Padeiro, o Manuel João, o Madeirinha, a Dorothy, o Bitoque, o Zé Nega, o Manuel Povinho, o Zé Piasca, o Manuel Branquinho, o Arsénio, o Chico, o Neves ( “messinenses com o sangue na guelra” – como o autor os descreve ) a par de um Gabriel Montou, Pitágoras ou Albert Einstein.
e assim, termino,
rendida ao deslumbramento metafórico deste “Crónicas…retratos que a vida me mostrou".

- gabriela rocha martins,
julho de 2008.