Ciência e Poesia








1ª Intervenção no Porto –( lida pela Poeta Maria Azenha )


Pediram.me que não ultrapassasse os 20 minutos na minha intervenção, como se um tema de tal natureza pudesse ser espartilhado em tão poucos minutos .Vou tentar fazê.lo, na certeza de que, fosse qual fosse a abordagem que fizesse, ficaria sempre muito aquém ..... E isto tem a ver com o tema proposto – Ciência e Poesia.
Interessante, assaz curioso, para uma troca de ideias que se pretende profícua, apesar das imensas armadilhas que o mesmo acarreta. E falo em armadilhas, na medida em que me questiono - será que a Ciência e a Poesia se aproximam ou distanciam? Acaso têm algo em comum?
Retrocedo, então, aos finais do séc. XIX, princípios do séc. XX, época de profundas alterações, a fim de tentar algumas respostas ,se acaso as conseguir...............
Segundo Gaston Bachelard, filósofo e professor francês, que vem a exercer uma profundíssima influência nos pensadores contemporâneos, o homem pensativo, ou seja, aquele que segue a vertente da subjectividade, logo o Poeta, opõe.se ao pensador que obedece ao princípio da objectividade - o Cientista -. Assim sendo, e, numa primeira asserção, parece, de facto, que Poesia e Ciência nada têm em comum. Mas ,curiosamente, o estudo dos símbolos suscitado pelos elementos naturais, demonstra a enorme complementariedade existente entre “o homem pensativo e o pensador”, revelada pela própria análise do conhecimento objectivo.
De facto, a revolução que se produziu nas Ciências, em finais do século e início do outro, levou Bachelard a repensar as relações entre a Razão e a Experiência, sendo que esta não pode ser uma simples verificação duma hipótese sugerida pela observação, como pretendiam os Empiristas. Hoje em dia, a Ciência moderna vai do racional ao real, isto é, começa pela construção teórica abstracta e, racionalmente, produz um “processus experimental”.
Destarte, a epistemologia bachelardiana – ou o estudo científico da História das Ciências – procura demonstrar que a Ciência procede por descontinuidade. Cada progresso constitui um corte em relação a um saber anterior, admitido como ultrapassado. O espírito científico avança por cortes em relação às imagens e aos símbolos do pensamento e da tradição, assim como as aparências sensíveis fornecidas pela experiência espontânea.
Mas é a herança científica que serve de base ao novo espírito científico. É por esta razão que Bachelard preconiza a “Filosofia do Não”, - pela qual nutro uma particular simpatia - ou seja, o investigador é todo aquele que trabalha na rectificação do saber.
Nesta mesma linha de pensamento, Michel Foucault insiste nas rupturas e descontinuidades que, ao longo dos séculos, deram, dão e darão origem ao saber e ao evoluir das práticas humanas.
Partindo de tais pressupostos de ordem filosófica, não há a mais pequena sombra de dúvida que a Ciência e a Poesia pertencem à mesma busca imaginativa humana, embora ligadas a domínios diferentes de conhecimento e valor.
A Poesia cresce da intuição criativa, da experiência humana singular e do conhecimento do poeta.
A Ciência, por seu lado, gira em torno do fazer concreto, da construção de imagens comuns, da experiência compartilhada e da edificação do conhecimento colectivo sobre o mundo circundante. Tem como vínculo, ao contrário da Poesia, o representar o comportamento material .Mais do que a leitura poética, tem a capacidade de permitir a previsão e a transformação directa do entorno material .
Dizia Einstein – não superestimem a ciência e os seus métodos quando se trata de problemas humanos!
A Poesia (como forma de arte) constitui uma necessidade urgente de afirmação da experiência individual e uma visão complementar e indispensável da experiência humana.
E porque a minha intervenção tem por finalidade originar uma posterior troca de ideias, gostaria, aqui e agora, de pegar num poema da Literatura portuguesa escrito por Camões e que aborda, a par da glória, sucesso e insucesso das armas da gente lusa, temas de astronomia e da visão geocêntrica hegemónica do séc. XVI - A Máquina do Mundo, in Os Lusíadas – Canto X – 80/90.

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elementar, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o
entende,
Que a tanto o engenho humano não se
estende.
Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si
tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil
também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que Ele só se entende e
alcança,
De quem não há no mundo
semelhança.
Aqui, só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e
Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.
E também, porque a Santa
Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil, que tem prudência,
Governa o Mundo todo que sustenta
(Ensiná-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta:
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos
empecem);
Quer logo aqui a pintura, que varia,
Agora deleitando, ora insinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos de celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando;
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas
falsamente.
Enfim que o sumo Deus, que por
segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.
E, tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda:
Debaixo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o Mobile
primeiro.
Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio;
Por obra deste, o Sol, andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Debaixo deste leve, anda outro lento,
Tão lento e subjugado a duro freio,
Que, enquanto Febo, de luz nunca
escasso.
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
Olha estoutro debaixo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste e faz ornado
Com largo Cinto de ouro, que estelantes
Animais doze traz afigurados,
Aposentos de Febo limitados.
Olha, por outras partes, a pintura
Que as estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrômeda e seu pai, e o Drago
horrendo.
Vê de Cassiopeia a fermosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
Debaixo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaixo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto
assento,
E Vênus, que os amores traz consigo,
Mercúrio, de eloqüência soberana;
Com três rostos, debaixo vai Diana.
Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros
leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre onipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro
E tem co Mar a Terra por seu centro.
Outros poetas da Língua portuguesa abordaram e abordam, também, mas sob diferentes ópticas, este mesmo tema, como o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, o físico, poeta e divulgador português, Rómulo de Carvalho que, como sabem, escrevia com o pseudónimo António Gedeão e o poeta brasileiro moderno Marco Lucchesi.
Por seu lado, o poeta Vicente Ferreira da Silva, aqui presente, preocupado com a visão quântica do mundo, oferece.nos – entre muitos - este belíssimo poema:

MEMBRANAS

metamorfoses inconstantes evoluem nas (r)evoluções
das maçãs. pobre Newton! no caminho do ínfimo, a
mecânica produziu incerteza. nenhuma esfera de vidro
resistiu! só há inércia nos estilhaços de rubis translúcidos.

o retorno apenas é possível pela alquimia dos sentidos,
pela busca do elo dos multi-Versos interiores. quais
cascatas verdes? sustenta-te nas terras das águas azuis.
não te esqueças que as estrelas são corpetes de jóias lilases.

animal político? por isso não existe lei sem paixão! já
tentaste Estagira? fazes bem! de qualquer maneira não
é inteiramente redutor. pensa na alternativa, a Cidade
do Sol, e reparte-te no espírito da entidade cósmica.

qual a velocidade para se viajar entre galáxias? simples.
terá que ser geometricamente proporcional à distancia a
percorrer. no entanto, nada se afasta. é o espaço que se
expande! e aí chegarás ao pensamento do coração branco.

vês agora porque sigo golfinhos às quintas e as nebulosas
laranjas pela manhã? são a chave para a vibração pulsante
nos perfumes dos oceanos astrais. ou física em poeiras! no
acelerador de probabilidades internas dum orbe carecido.

que hei-de fazer? gosto de gatos siameses! principalmente,
em buracos de par nove. são mais resistentes. e meigos.

mas nunca abandonarei o imaginário vivo dos teus verbos.

[ Vicente Ferreira da Silva ,in "Interlúdios da Certeza"] ,

e

Maria Azenha, a poeta síntese, ou aquela em cuja obra se preconiza tudo o que tenho vindo a afirmar anteriormente - o corte entre dois momentos de criação: o lugar de onde parte, realista, e o lugar a onde chega, fantástico. De facto, há uma brincadeira muito séria, originada na realidade e que, na sequência do seu evoluir poético, se lança nos territórios mítico e absurdo, como poderemos observar neste poema.adivinha transcrito em Triplov, por Maria Estela Guedes:
o meu tio por exemplo
que já morreu e tinha por sinal
a alcunha de Poliban
enterrava todos os dias
um pedaço da minha tia
dentro do colchão

(isto é para disfarçar a palavra
que devia ser dita e não disse)

Que palavra é essa que devia ser dita e não é? Que exercício é proposto ao leitor? Taliban – sugere.nos a Estela.

[“A Alma Azul de Maria Azenha”, por Maria Estela Guedes].

E é, precisamente, com estes poemas, de dois poetas que me são muito caros, que termino este meu passeio científico.poético. Faço.o do mesmo modo que o iniciei. Isto é. Com as dúvidas que o tema , ora, me suscitou e suscita – outras ficarão para depois....
Afinal, como funciona a Ciência? Que semelhanças e diferenças aparenta com a Poesia? Quais os impactos do pensamento científico na cultura humana? Qual o papel que a Poesia desempenhou na introdução das ideias científicas em vários momentos da História? Até que ponto os usos e abusos da Ciência e da Tecnologia nos ameaçam? Quais e como percebem os Poetas as limitações da Ciência?
Atrevidamente, ouso uma resposta, afirmando, tão só - não sou poeta, daí a minha presente dificuldade, mas sim uma Vagamunda da Palavra que acredita “na Ciência que sonha e no Poema que investiga”

Porto ,12 de Novembro de 2009 ,in Revista Triplov .