Poesia e Ciência







Realização: Departamento de Cultura e Lazer da Reitoria da U.Porto, 2010-02-11

Conferência inserida no ciclo Diálogos com a Ciência | Outubro de 2009 - Março de 2010

Poesia e Ciência - parte 2 | 11 de Fevereiro de 2010
Sessão apresentada pelo Pró-Reitor Manuel Janeira | Comissário: Vicente Ferreira da Silva | Oradores: Alice Macedo Campos, Gabriela Rocha Martins, Nuno Júdice e Vitor Oliveira Jorge.



2ª Intervenção


cumpre.me ,em primeiro lugar ,agradecer à Reitoria da Universidade do Porto ,na pessoa do Senhor Pró Reitor e ,mui particularmente ,ao poeta e meu querido amigo ,Vicente Ferreira da Silva ,o convite formulado para integrar este ciclo de Conferências ,intitulado


Diálogos com a Ciência

todavia e se me permitem ,gostaria ,antes ,de apresentar.me ,recorrendo às minhas palavras vagamundas

- deliberada
mente
olho o vagabundo do outro lado da rua e
tenho pena
não dele
mas de mim
sentado no chão tem o absoluto do nada e
eu?
reservo.me na serventia de tudo

olho a cigana do outro lado do passeio
invejo as palavras com que tece
nas mãos
ilusões e
eu?
presa ao presente em que o nada se compraz
no absurdo das intenções

a cabeça reserva.me a dúvida
o cansaço das estórias recriadas e
repisadas
ninguém tem o direito de ser
míseros ímpios feitos em deuses

senhora
o vinho corre!
deixá.lo correr
alguém pergunta
porquê?

o bêbado bebe
na solidão de si
se for o caso
ou talvez não e
porque não?

o vagabundo olha.me
estendo a mão a que a cigana revestiu de cacos
deixo.lhe um sorriso
preso à imensidão de um olhar
profundo
que não ouso

não sei colar os cacos que a cigana
forjou

o não é a palavra proscrita
no sim de uma vida
sem desígnio
perseguem.me os fantasmas da escrita
a maledicência transfere o golpe mortal
choro o animal ferido
rio.me do pontapé dado a um irmão
de raça
alimento.me de ossos
de peles que devoro
como a predadora imersa
em ladaínhas de bem querer

não ouso ninguém

prefiro o salto do vagabundo que
me estende a mão para segui.lo
ao encontro oculto da cigana
sou
sapato
gato
rato
a ínfima parcela de um choro
que não choro
de uma gargalhada
que não dou

coloco a cabeça entre mãos
aperto.a
não me detenho em nada
não ouço nada

prefiro a algazarra do demónio
onde encontro o absurdo do não ser
em perfeição

não dói

matei a alegria
matei a cigana
matei o vagabundo e
não percebi que ao fazê.lo
me matava a mim
reduzida ao nada
feliz
no espaço que circunda
o estar no meio do conflito

deixem.me entregue às minhas loucas
fantasias onde bebo
( e porque não? )
os néctares que me aprouver
deixem.me
ser
a verdade
falsa do trio que desenhei
o vagabundo
a cigana e eu
três marginais no destino

estou tão cansada de ser bem comportada

valorizo hoje
amanhã destruo
a sobreposição de comportamentos e
de atitudes
como manda a santa madre igreja
os anjos
os arcanjos
os santos
os demónios
el.rei e
senhor

sou muito bem comportada

respeito a cor
o grito
o silêncio
o absurdo
a redundância
tudo começa a fazer sentido

ausento.me em cansaço

olho o outro lado da rua

não vejo o vagabundo
terei sonhado?
a cigana sumiu
terei efabulado?
não me revejo
estarei acordada?

é necessário que alguém vigie
os extra.terrestres acabam de ocupar
o centro da avenida
têm olhos redondos
nariz redondo
orelhas redondas
barriga redonda
a boca
é afiada
ah! têm duas línguas
bífidas
como as serpentes que procuram a estrada
cabeças erguidas na morte
as cadeiras
aprumadas
continuam à espera que o espectáculo comece
os actores não comparecem

[ alguém inverteu os papéis ]

apagam.se os projectores


deliberada
............. mente

antes de retomar a minha intervenção ,tendo como ponto de partida a origem grega da palavra POIESIS – como substantivo ,género feminino - traduzindo acção de fazer e concebida em quatro tempos distintos ,a saber
1 .criação ( como oposição à praxis ),
2 .acção de compor poesia ( reportando.nos à inteligência )
3 .arte da poesia
4 .obra poética
diferenciando.a de POIEMA - substantivo, género neutro - “o que se faz” –
isto é
1 .obra,
2 .“produção” de poesia ,de poema ,de versos isolados
3 .ficção
4 .acção de fazer a obra.
se atendermos à evolução da palavra até aos dias de hoje ,verificamos que as diversas acepções de POEMA nem sempre são muito precisas, e, em muitos casos, confundem-se com o conceito de POESIA, muito embora e ,de um modo geral ,POEMA seja entendido como uma das expressões possíveis da POESIA.
consideremos algumas definições ,normalmente ,aceites:
1. obra literária em verso;
2. obra literária em prosa ,mas de estilo poético;
3. arte de escrever em versos;
4. maneira de versejar própria de um autor ou de um determinado estilo;
5. o que desperta o sentimento estético do “belo”;
6. actividade linguística que procura criar com a linguagem um estado psíquico de emoções estéticas
neste último caso ,a língua transcende a função de meio de comunicação ,para tornar.se ,ela mesma ,objecto de comunicação ,servindo de matéria-prima para a obra de arte literária
assim ,a aplicação artística de uma língua torna.se espontânea ,e ,encontra.se em todos os tipos de sociedades ,mesmo as mais rudimentares ,quer na sua vida material ,quer espiritual.
como expressão linguística ,o poema tende a organizar.se em frases ritmadas ,com base na entonação ,no número de sílabas ,na distribuição mais ou menos regular ,ou até mesmo irregular ,das sílabas acentuadas ,tornando.se ,destarte ,numa série de versos.
para o poeta e diplomata mexicano Octavio Paz
- “o poema” é uma palavra semanticamente instável, que se vincula, pela etimologia e por natureza, à poesia ,e ,o poema é uma composição literária de índole poética ,isto é ,“um organismo verbal que contém, suscita ou segrega poesia” ( sic ).
a conexão ortodoxa entre poema e poesia implica ,ainda para o referido poeta ,um juízo de valor, ainda que de primeiro grau ,porque todo o poema encerra poesia, e vice-versa ,e ,assim ,sistematicamente, a poesia identifica.se com o poema.
a correlação, no entanto ,observa.se ,apenas ,como tendência histórica ,já que “existem poemas sem poesia”,e a poesia pode surgir ( e porque não? ) no âmbito da estrutura formal de um romance ou de um conto, de modo que muitos autores consideram que um poema pode ser estruturado não apenas em versos, mas também em prosa.
o mesmo Octavio Paz ,numa forma assaz poética ,acresce: “[...] o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, colectiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tenha nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!”
então ,que conexão existe entre poesia e poema?
será que se confundem?
Aristóteles dizia que “nada há de comum, excepto a métrica, entre Homero e Empédocles e por isso ,chama.se poeta ao primeiro e filósofo ao segundo
e ,de facto ,assim é
nem todo o poema contém poesia ,do mesmo modo que há poesia sem poemas .mas é no poema que a poesia se recolhe e/ou se revela ,plena
é lícito ,então ,perguntar ao poema pelo ser da poesia ,porque o poema não é apenas uma forma literária ,mas o lugar de encontro entre a poesia e o ser humano
por excelência ,o poema é um organismo verbal que contém, suscita e emite poesia
logo ,forma e substância são a mesma coisa
algumas teorias da literatura ,mais redutoras ,pretendem reduzir a géneros a vertiginosa pluralidade de um poema .no entanto ,esta pretensão ,em nosso entender ,padece de uma dupla insuficiência:
1º - porque reduz a poesia a umas tantas formas - épicas ,líricas ,dramáticas
[ então ,e ,como muito bem pergunta Octavio Paz – que continuará a acompanhar.nos esta noite - o que faremos com os romances ,os poemas em prosa ou ,por exemplo ,Os Cantos de Maldoror (de Lautréamont) ou Nadja (de Andre Breton)? ]
2º - todas as actividades verbais ,para não abandonar o âmbito da linguagem ,são susceptíveis de mudar de signo e transformar.se em poemas ,pelo que as classificações mais tradicionais e mais fechadas podem tornar.se demasiado redutoras
cada poema é um ser único, especial e irrepetível
a única característica que os poemas têm em comum consiste em serem obras humanas, como o quadro de um artista plástico ou a cadeira de um marceneiro.
são ,no entanto ,obras diferentes ,porque entre os poemas não há uma relação de causa e efeito ,como se verifica com os instrumentos de trabalho
eis.nos chegadas ao cerne da nossa presente intervenção .ao seu título .ao repto que nos foi lançado

- Diálogos com a Ciência

haverá entre a Poesia e a Ciência diálogos possíveis?
como realidades distintas ,todavia ,comunicáveis ,claro que sim .ambas pressupõem o outro .quem lê
todavia ,técnica e criação ,utensílio e poema são realidades distintas
cada poema é um objecto único ,criado por uma “técnica” que morre no instante da criação
além disso ,aquilo que se pode chamar “técnica poética” não é transmissível ,porque não é feita de receitas ou de fórmulas ,mas sim de invenções e subtis jogos com a linguagem que servem ,essencialmente ou tão só ,o poeta

na construção formal de um poema ,exploram-se as possibilidades da linguagem em geral e de uma língua ,em particular
1 .no som
2 .nas palavras
3 .na associação de ideias
4 .na construção de versos - utilizando-se o ritmo ,a harmonia ,a rima ,a assonância ,a aliteração ,as figuras de estilo ou as figuras de sintaxe
para Jean Cohen ,por exemplo ,um poema deve ser breve ,limitado e obediente a certos requisitos formais ,visto traduzir.se numa “técnica linguística de produção de um tipo de consciência que o espectáculo do mundo não produz ordinariamente”.
por outro lado ,Antonio Quilis, define o poema “como um contexto linguístico no qual a linguagem, tomada no seu conjunto de significante e significado ,alcança uma nova dimensão formal ,que ,segundo a vontade do poeta ,realiza-se potenciando os valores da linguagem através do ritmo”.
o poema é feito de palavras ,seres equívocos que connosco brincam e que, sendo cor e som ,também são significado, do mesmo modo que um quadro também será um “poema” , se for algo mais que uma mera linguagem pictórica
para além de ser palavra ,o poema constitui.se na História ,sem deixar de transcender a própria História ,na medida em que todo o poema se manifesta num determinado tempo ,numa certa realidade ,num preciso contexto social
para alguns ,o poema é a experiência do abandono .para outros ,do rigor e da alteridade ,porque cada um procura algo no poema ,algo que ,no entanto e sem o saber ,traz dentro de si
o poema é de facto ,uma possibilidade aberta a todos ,independentemente do eu ,mas que só toma corpo ,quando encontra um leitor ou um ouvinte .há ,assim ,uma característica comum a todos os poemas ,sem a qual nunca haverá POESIA – a comunicação
o poema é ,ainda ,mediação ,porque graças a ele ,o tempo original - “pai dos tempos” – intervém no momento em que se alimenta a si próprio e transmuta o homem ,e ,assim ,a leitura de um poema mostra uma enorme similitude com a criação poética ,como nos afirma a poeta brasileira ,Sílvia Regina Pinto ,“O poeta cria imagens ,poemas .o poema faz do leitor imagem, poesia, pois é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, impulso rítmico perpetuamente criador

vejamos como exemplo ,as duas primeiras estrofe do ‘metapoema’ Motivo ,de Cecília Meireles:

“Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidia,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento.”

há ,no entanto que levar em linha de conta que o tempo do poema não tem nada a ver com o tempo cronológico
comumente ,diz.se - “o que passou, passou”
para o poeta ,porém ,o que passou volta a materializar.se
senão vejamos -
o poeta - disse o centauro Quíron a Fausto - não está amarrado pelo tempo”.
e este responde: “Aquiles encontrou Helena fora do tempo”.
Fora do tempo? Melhor ,no tempo original”.

destarte o poema ,inicialmente ,um arquétipo ,converte.se quando alguém repete os seus versos ,cuja função é recriar o tempo

vejamos um pequeno exemplo poético dessa questão temporal, destacado do Cancioneiro de Fernando Pessoa:

“Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
nessa minha infância
que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
fui-o outrora agora.”

deste modo ,o poema é uma totalidade encerrada dentro de si mesma ,cuja unidade não é o sentido ou a direcção significativa ,mas sim o ritmo ,havido não apenas como medida, mas, fundamentalmente ,como visão do mundo ,e ,assim ,Moral ,Política ,Técnica ,Filosofia ,enfim ,tudo o que chamamos Ciência tem as suas raízes no ritmo...

recorremos ,mais uma vez ,ao Cancioneiro de Fernando Pessoa:

“No piano anónimo da praia
tocam nenhuma melodia

De cujo ritmo por fim saia
todo o sentido deste dia.”

à laia de conclusão e partindo de tais pressupostos ,não há a mais pequena sombra de dúvida que a Ciência e a Poesia ,se bem que pertencentes à mesma busca imaginativa do Homem ,se encontram ligadas a domínios diferentes de conhecimento e de valor.
o poema cresce da intuição criativa ,da experiência humana singular e do conhecimento do poeta. a ciência ,por seu lado ,gira em torno do fazer concreto ,da construção de imagens comuns ,da experiência compartilhada e da edificação do conhecimento colectivo sobre o mundo circundante .tem como vínculo ,ao contrário do poema ,representar o comportamento material .mais do que a leitura poética ,tem a capacidade de permitir a previsão e a transformação directa do entorno material
mas - em tudo há sempre um MAS - as aproximações entre a Ciência e a Poesia ,se vistas dentro do mesmo sentimento do mundo ,revelam.se riquíssimas ,porque a criatividade e a imaginação têm em comum o “húmus” com que se nutrem
além disso ,as incertezas de uma realidade complexa que podem transformar.se em versos ,também podem ser representadas por formas matemáticas
nos tempos actuais ,em que a Ciência e a Tecnologia impregnam a nossa Cultura e o nosso quotidiano ,o poema pode parecer um anacronismo ,do mesmo modo que as muitas pequenas verdades científicas constituem uma abordagem incompleta e limitada do mundo
há ,todavia ,um aspecto ,no que concerne ainda ao poema que gostaria de destacar ,antes de terminar a minha intervenção
respeita à métrica e ao ritmo
não são a mesma coisa .o ritmo é inseparável da frase - não é composto só de palavras soltas ,acentos e pausas ,de imagem e sentido - e apresenta.se como uma unidade indivisível e compacta que constitui o verso
a métrica ,pelo contrário ,é uma medida abstracta e independente da imagem
esta distinção é assaz pertinente ,porque inibe chamar poemas a um grande número de obras que, por pura inércia ,ainda constam ,como tais ,nos Manuais de Literatura ,ao contrário de outras ,como “Alice no País das Maravilhas” ,de Lewis Carroll ,ou “El Jardín de los Senderos que se bifurcam” ,de Jorge Luis Borges ,para só referir estas duas ,que deveriam ser classificadas como poemas ,porque nelas a prosa nega.se a si mesma e as frases não se sucedem obedecendo a uma ordem conceptual ou narrativa ,mas são ,tão só ,presididas pelas leis da imagem e do ritmo

e agora sim ,a terminar ,eis a minha provocação ,lançada a todos ,público e mesa - ou não me chamasse gabriela rocha martins - inserida no dicionário de Joseph Shipley:
-qualquer composição em verso - e nenhuma que não o seja - é sempre definida ,seja ela boa ou má ,poema ,por todos os que não possuem outra forma de a classificar.




muito obrigada.


bibliografia consultada:

BOSI ,Alfredo .O ser e o tempo da poesia :1983;
COHEN ,Jean .Structure du langage poétique :1966;
MEIRELES ,Cecília .Obra Poética ,1958;
PAZ ,Octávio .O Arco e a Lira ,1982;
PAZ ,Octávio .Signos em Rotação , 2ª ed. ,1976;
PESSOA ,Fernando .Obra Poética ,1983;
QUILIS ,António .Métrica Espanhola, Barcelona :2ª ed. corrigida y aumentada, 1985;
SHIPLEY ,Joseph .Dictionary of World Literature ,New Jersey: Littleford ,Adams & Co.


Porto ,11 de Fevereiro de 2010