Recensão de Luciano Conceição da Rosa




Berlim, 16 de Outubro de 2008

Saltam rapidamente à vista alguns aspectos na tua produção literária, tanto do ponto de vista formal como temático. Do ponto de vista formal, nota-se uma certa predilecção pelo gosto lúdico que se exerce num virtuosismo gráfico com vista a desprender várias leituras simultâneas, com trabalho sobre o significante (o conceito de Saussure). Quer dizer, potencia-se o grafismo como libertador da pluralidade de sentidos ou da polissemia e nalguns casos (por exemplo: [In]sense) põem-se a funcionar analogias por semelhança remotivadora idêntica à que existe nas etimologias populares, embora o mais importante seja apenas a sugestão que fica a pairar e não qualquer leitura concreta em definitivo. A parte gráfica expande-se numa subversão das convenções usando-se o ponto em vez do hífen, ou a letra minúscula após um ponto, ou fazendo um uso nada canónico da vírgula, como em início de verso e pouco mais. E eu pergunto: esta subversão das convenções que vigoram para toda a gente num dado momento da História da Língua (pois, a língua natural é social e destina-se à comunicação) aparece nesta produção poética para facilitar outra leitura e outra prosódia? Se a resposta fosse sim, a subversão estaria legitimada. Caso contrário, não, tratar-se-á então de mero capricho sem qualquer alcance, nem mesmo de marca estilística de autor. Ponho isto à tua consideração e és tu que deves dar a resposta a ti própria. Ainda no campo formal, pode acontecer uma descontrução do significante como no poema Delete... me Enter. A descontrução acontece no lexema de língua inglesa e a dada altura aparece um "dele" que já pode ser lido ambiguamente, ora como parte de Delete, ora como, nesses escombros, uma palavra portuguesa. Quer dizer, toda a parte formal implica uma poesia metalinguística e metapoética, um trabalho sobre a língua com a língua e um trabalho sobre o poema com o poema. Também há algumas tautologias que se propõem funcionar como instâncias de evidência persuasiva ou alterna-se espírito lúdico com seriedade numa pulsão de quem ainda não se rendeu, de quem continua a alimentar o dilema...os dilemas temáticos de que falaremos mais à frente. Estas características formais estão em sintonia com o concretismo de certos poemas, ora concretismo sinestésico, ora concretismo minimalista. As metáforas de cariz superlativo relacionam o longínquo com o propínquo, nem sempre sem raiva pelos absurdos da existência.
E comecçamos a entrar nas temáticas poéticas do silêncio, do amor, da noite e da morte, talvez as mais marcantes. A poesia como uma feminilidade por excelência e a identidade (sentida em ínfimos pormenores da existência que se escoa desde a infância) aparecem em vários registos da tradição literária. Com efeito, ouve-se na arte poética de Delete.me ora ecos de mestria simbolista, ora uma heteronímia difusa numa passagem bem pessoana, ora explicitamente um roteiro de influências (Carlos de Oliveira, Neruda, Eugénio de Andrade, entre outros...). Opondo-se ao "jogo subtil das palavras" há "um silêncio no outro lado da palavra não escrita", ou seja, o poema pode viver bem alto, até acompanhado por outras manifestacoes artísticas (música, escultura...) ou remeter-se a expressão sigética suprema, quer dizer expressão do silêncio, por mais audível que este seja. Uma vez por outra, o poema encontra um ritmo de corcel, um ritmo de estro inspirado. E são muito de levar em conta as preocupações com a transformação do mundo. Há um intimismo amoroso ora explícito ora implícito, complexo, esquivo, evasivo, confessional, que circula entre o amor e a morte, eros e thanatos, e que parece realizar-se, embora de forma ambígua e ressentida ("sonhos confiscados...beijos roubados"). A presença de temas muito exóticos (como a huri, beldade muçulmana paradisíaca) pode justificar-se por Silves, a velha Xelb, outrora grande metrópole ibérica. Enfim, a poesia como ascese pode, finalmente, fecundar prosas poéticas, e até literatura infantil, para terminar num registo em que a memória se torna constitutiva.

Pequenos reparos:

Francamente não gosto da capa, provavelmente dissuasora de leitura para muita gente mais preconceituosa. Na badana traseira, há um "Bem hajam". Temos aqui o verbo haver como impessoal e, por isso, creio bem que esta forma não existe embora se ouça aqui e acolá. O meu Bem haja a todos, sim, pode ser. O Bem haja está substantivado. Ou como interjeição, Bem haja! Mas não Bem hajam, embora, repito, se ouça... Criaste o verbo amorar. Seria assunto para discutir longamente. Utilizas a forma "explode" como se o verbo fosse transitivo; admite-se, embora a norma exija o causativo: fazer explodir! Na pág. 43 aparece "bordel". Bordel? Não será burel ou bordão? Noutro poema aparece... "falece as baladas"... não será: falece às baladas? Noutro verso, aparece: "Só a judite... dividia-se..." tem dois sentidos semânticos: significa ora a única ou então algo como bastava/ou outra forma do verbo bastar. Falo nisto por causa da posição do clítico. Só a Judite se dividia (Judite= a única...) com o se à esquerda do verbo. Só a Judite dividia-se... com o se à direita do verbo implicando outro sentido que tem a ver com bastar. Na pág. 55 aparece: "atravessa uma frase", mas se calhar é: atravessa uma fase.Também usas o verbo insinuar (p. 57) como intransitivo quando ele é transitivo; está bem: é uma liberdade poética. Na pág. 58 aparece uma construção que soa a interferência do francês (passé composé): "ela nunca há sonhado..." embora seja correcto gramaticalmente, mas não pragmaticamente. Na pág. 60, "escadas que não conduzem a nenhures" (duas negações?) e que, penso, queres dizer: escadas que conduzem a nenhures. Há um poema onde escreves: sabe a mim, no sentido de tem sabor a mim ou sabe-me a mim. Não considero a forma muito feliz. Em partes dos textos em prosa, misturas vários níveis de língua sem grande critério. Parece-me que te podias desenvolver como boa escritora de literatura infantil. Estarei errrado?
O sempre amigo Luciano.


8 de março de 2008,
auditório da Caixa de Crédito Agrícola de São Bartolomeu
de Messines e São Marcos da Serra