'cartão' de Boas Festas.




1.

ponho a minha mão
direita, paralela
à mão direita encurvada e
meio aberta
encadeada com todas as mãos puras dos mundos.
ponho a minha mão, agora.
vão, irmanadas com ela,
pétalas rosa que já foram pão
algas roxas azuladas penas anis
caules gotículas areias grãos e asas
sustidas por duas brasas frementes
que são o que serão.
ponho aqui a minha mão
lavada
dos lodos inclementes
limpa
de acenos frouxos acordos ocos
livre
limpa lavada livre: a mão
junto-a aqui, ponho-a agora,
concentrada. meio aberta
concertada com veios e meridianos
os mais puros liames dos mundos.
ponho aqui agora a minha mão
cautelosa na fragilidade dos elementos
caudalosa na suavidade dos impulsos
vibrátil poderosa intensa e ágil
concentrada, agora, no pousar das grandes asas
que é como quem diz: os universos.
pouso, aqui, agora, a minha mão.
aninha-se em silêncio falante.
permanece no instante, ínfima,
caudalosa cautelosa encadeada
no instante vibrátil e fremente pousada.
ponho aqui a minha mão. e alumia.
aqui, invoca sela e abençoa
encadeada no arco da amorosa clemência.
ponho a minha mão
junto da outra mão
direita e esquerda encontradas na vida
minhas mãos de esperança amealhada
juntas às mais puras, aos mundos, estão.
fluir cioso de universos em pétalas e asas
brioso adejar de universos dentro das algas
— salgado, em cada gotinha de mar
doce, em cada lágrima de amar —
ponho minhas mãos aqui, aliviadas
do estrugido de mísseis, metralhadoras
do trilho de apedrejados sangues vertidos
do cisma odioso de roubar a fartura
embuste odioso cisma prestes a estourar.
ponho a minha mão e a outra
confiantes na esperança amealhada
firmadas na passada de canseiras
juntas invocam selam abençoam
e iluminam
o côncavo pulsar da brasa ardente
onde desaguam os puros meridianos dos mundos.
juntas. aninhadas, pois, concertadas
pouso — a minha mão e a outra — sobre o pulsar
do côncavo ardente do meu peito livre.
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2.


ponho a minha mão na acha
entre a brasa e a pinha seca
dentro do tronco de oliveira verde
no caule da branca flor em flor.
integro as sagezas da combustão
irmanada nas fortes cores da fogueira
no fogão na lareira na salamandra
ponho reponho e deponho, com a mão,
a malícia a maldade o servil gesto
o reles olhar, intento ou acto
da submissão.
ponho a mão, a mão esquerda, no fogo
desbordo-me em cera derretida
multiplico-me em estalidos, faúlhas
reparto-me pela constância vibrante
dos amarelos arrepiantes do arder.
também ponho a mão direita até fundir
na merecida fuligem a que pertencem
as dispensáveis fugas e rasteiras.


..............................sabem, estas mãos, o rumo do amarelo
..............................fulgente nos azuis nocturno e solar.



..............................sabem, estas mãos, da rara temperatura
..............................alojada na fusão das puras cinzas
..............................se o pauzinho resiste, impertinente, ao vazio.



ponho ambas as minhas mãos ao alto
tornam-se, elas mesmas, no estalido
que o emperrar da engrenagem supõe.



..............................sabem, estas mãos, como é virtual o fumo
..............................assoberbado pela servidão maléfica.



..............................estas mãos sabem os gestos paralelos
..............................— os da mão esquerda aos da direita —
..............................gestos zeladores da potência do ser.



por tudo isto alinho,
alio as minhas mãos
ao pleno fogo
e, universalmente,
emperramos e detemos o desconsolo.
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3.


ponho a minha mão quente — a inquieta —
juntinho da minha outra mão calada.
uma, a desassossegada, rugindo
instiga a indignação, o movimento.
outra, a raiz da fala graciosa
amestra a pausa de respiração.
ponho aqui, assim, entrelaçadas
as armas magistrais da melodia
as bagas da alegria, salvas e sinos
fogos, sem artifício, do que vive.
entrelaçadamente, assumo as mãos
meus ninhos do fui e serei, pois sou.
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4.


com ponho a minha mão estou a nomear
contornos do impossível e ilimitado
cacho das fibras de vida
expectante.


com ponho a minha mão toco o eterno
ciclo virtuoso dos caminhantes.
por isso ponho agora, aqui
e em todo o sempre
esta mão destinada a ser casulo
a tecer casulos no abrir-se a outras mãos.


com ponho a minha mão, afinal, digo
as sílabas contidas por germinar
os lábios carentes no longo beijo
abraços entremeados a braços
e ombros
no instante da chegada
depondo bagagens alheias
abandonando a estranha carga
no instante do encontro
de olhar, de olhos
transfigurados em abraços longos, doces.


com ponho a minha mão percebo, enfim
que nada digo faço nem invento:
é da natureza intangível dos gestos
amealhar, para habitar, os universos.
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5.


não fossem elas
nunca crescia o trigo
nem o grânulo geraria salsa
flores peixes uvas tâmaras leites.
não fossem, não foram elas
seguiam os continentes por encontrar
a morabeza por se dar
tango flamencos e fado
ainda, mudos, a latejar
saudades no âmago da vida.
não foram elas
não fossem elas
as nossas mãos
agora aqui sofreriam
até
pela ausência do poema.
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6.


de par em par
vidraças
gestos
temores de medo apavorados
escancarar. desligar.
de par em par
ombros
— os ombros —
e tudo o mais que se refaça
está a nascer do solidário abrir das mãos.
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7.


acolho — o esvaziar da mágoa
o desaguar de dores
e perfídia
desencontros entre o veneno e salivas
impurezas no deslaçar do mofo
brancuras a vencer carunchos —
acolho, no pleno abrir de minhas mãos
aos universos dos frementes gestos.
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8.


“não meu, não meu é quanto escrevo”
ensina Pessoa, eternamente.



também minhas não são
estas pungentes
estas mãos que me nascem no poema.
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9.


lanço os búzios salgados
sem segredos
trazidos pelo alto ondear das vagas
deram à costa sul da humanidade
e, orientados pelos interstícios da fala,
rolaram até às minhas mãos de areia em verso.
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10.


tantas quantas inúmeras são?
nem saberia reportar
o misterioso
balanceado a quatro ventos
ancorado à plena rosa
cardeal
dos gestos.
dizes-me: dedo a dedo,
uma dezena.
digo-te: dedo a dedo
infinidade
se às minhas mãos unirmos
as tuas
as tuas as suas e as outras:
puras
todas as mãos dos universos.
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maria toscano.
Coimbra, ‘Galerias Santa Clara’.
31 Dezembro/2011 e 1 Janeiro/2012