a crispação de um toque a-fora o Ser









de novo ,com a chancela da Editora Lua de Marfim ,sairá ,em breve ,um outro livro ,desta vez ,uma láurea a Maria Gabriela Llansol .se a ela agradeço a exigência na aventura da escrita ,a sua edição deve-se a um conjunto de pessoas a quem estou muito grata .assim ,o meu bem haja:
à Maria João Cantinho ,pelo seu Texto-matriz ,excelente apresentação do livro;
à Inês Ramos ,pela magnífica concepção de capa e pela paciência e rigor na paginação;
ao Paulo Afonso Ramos que ,como editor ,continua a acreditar nas minhas palavras e a presentear-me se ( pensa que ) eu mereço

a todos e ao meu "a crispação de um toque a-fora o Ser" ergo um cálice de "Sercial Madeira" ,de lavra familiar ,logo ,bem especial






um novo projecto individual na forja






Texto matriz - agora-a-memória .agora o sopro
 da face impressa sob a derme .depois
 o canto-do-cisne em resguardo-amansado
 pelo medo .depois um rasgo de vulgaridade


Se uma paixão pudesse dizer-se de Gabriela Rocha Martins, essa seria a da memória. Não só como exercício poético, mas como modo de guardar o canto possível, que atravessa a sua poética, em particular esta obra. O tempo que se guarda nas imagens, essa “crispação de um toque a-fora o Ser”, que dá título ao livro, é um mote ou antes uma matriz que se inscreve na escrita da autora. Desenha-se nesta cartografia um compromisso que, mais do que radical, exige a fixação de um lastro poético, de uma configuração de pontos cardiais que traçam o caminho do sujeito poético. Por isso, ela nos diz, nesse compromisso de imortalidade, que marca o arranque do livro, assim: a metáfora estigma-se no lastro/ dos Poetas/tão de manso”. A clareza do propósito enuncia-se na primeira estrofe do poema, aludindo a um legado poético que tresluz na metáfora, mas que é simultaneamente estigma ou cicatriz, e em que o poético emergisse como sinal de santidade, na esteira da poesia mística de D. Juan de la Cruz. A ideia de que o poético é também uma ferida essencial, intacta, como disse dela António Ramos Rosa. A que não se fecha, revelando a impureza do corpo, mas também a da própria linguagem, reflectindo essa contaminação essencial do sujeito que se implica ele próprio enquanto matéria poética.
Nada disto parece ser alheio à poética da autora, que assume referências explícitas e que se enovela com a escrita de Maria Gabriela Llansol. Dela é herdeira, sobretudo no modo como trabalha e opera sobre a linguagem, sem, no entanto, se colar ao texto llansoliano. É, antes de tudo, uma inspiração sobre o seu próprio texto, como lastro que confere ao poema essa espessura intertextual. Por isso, Gabriela Martins refere esse “engodo gradual”, essa urdidura que o silêncio tece na matéria, em jeito manso, mas que subverte e suspende as palavras, que as empurra contra o banal e desfaz os elos da sua familiaridade. Comecemos justamente por aí: a sintaxe, que “desarruma” a sucessão e a linearidade habitual de uma frase, levando-nos ao consolo da identificação. Versos cortados, deslocamentos sintáticos, arrojos de quem não se contenta com o verso simples e claro. A clareza, ela sim, há-de vir de um outro qualquer lugar, como uma irradiação ou uma luz imanente que nasce da metáfora. A imagem transforma-se no retábulo do tempo e da memória, em modo coagulado de Ser, como “crispação”. Esta, como sabia Llansol, jorra disso que é a “imagem-fulgor”, conceito que labora de forma latente nesta poética. Quer-se a crispação dos sentidos para que o poema seja mais, muito para além disso, que o mero exercício e jogo de palavras inócuo. A crispação nasce do avesso, já lá iremos, do adverso que suspende o óbvio e o cliché, que suspende os sentidos habituais do poema. Nasce a crispação desta outra forma de cindir o verso, de o cortar, pela pontuação inusitada, os pontos antes das palavras (ou as vírgulas), obrigando o olhar à suspensão. Porque o olhar acaba por tropeçar no ponto que antecede a palavra sem explicação, obrigando a um gesto de respiração outra, um novo modo de olhar para o alinhamento do verso e do seu sentido.
Como no poema da página 16, “Encontros com sabor a terra”, “(…) leve/. Sussurro brando arquejante brado/em adiada espera” configuram um novo ritmo a um poema que teria uma cadência fluída, não fosse a desinstalação provocada pelo ponto, obrigando a uma paragem forçada, a um silêncio e a uma suspensão da respiração, antes desse “sussurro brando”. Erótica alusão, na minha leitura, nesse poema que alude à presença da mulher e da sua nudez, na noite, ele impõe a paragem, provocando o efeito de crispação. Poema onde também se fala da mutilação de corpos, remetendo-nos para uma outra crispação, já não amorosa, mas a do seu inverso, a do ódio.
Se a ideia de crispação atravessa a obra de Gabriela Rocha Martins, ela ganha uma outra dimensão, não apenas a da imagem que coagula o instante, mas a da própria linguagem, subvertendo o poema através de deslocamentos sintáticos, que sacodem os sentidos habituais e os clichés, recusando o sentimentalismo de muita poesia contemporânea, operando por corte e suspensão, utilizando como recurso a pontuação como técnica de corte e da própria crispação da linguagem. Sob o signo da escrita de Maria Gabriela Llansol, sabe que a crispação da linguagem no poema se arroga o gesto de suspeita a tudo o que é familiar naquela, que não provoca o arrepio dos sentidos, face ao excesso que constitui a própria linguagem e que não é dizível senão no silêncio de uma outra que há-de vir. O poema é o espaço do porvir, dessa imanência que se reclama no jogo da inocência do ser. Donde as alusões à demência de Hölderlin, no poema da página 25, como essa experiência-limite de revelação da linguagem. Porque, mais do que indigência, a poesia transporta a possibilidade da revelação do ser, esse que nos aguarda na clareira do silêncio. Dessa crispação que advém de um toque e de uma contaminação do Ser-Revelação, nessa estranheza essencial e espantosa que percorre o mundo em canto celebratório. Como um magma irresistível e que acontece no poema.


Maria João Cantinho






mais uma vez ,com a chancela Lua de Marfim