Texto
matriz - agora-a-memória .agora o sopro
da face impressa sob a derme .depois
o canto-do-cisne em resguardo-amansado
pelo medo .depois um rasgo de vulgaridade
Se uma paixão pudesse dizer-se de Gabriela Rocha Martins, essa
seria a da memória. Não só como exercício poético, mas como modo de guardar o
canto possível, que atravessa a sua poética, em particular esta obra. O tempo
que se guarda nas imagens, essa “crispação de um toque a-fora o Ser”, que dá
título ao livro, é um mote ou antes uma matriz que se inscreve na escrita da
autora. Desenha-se nesta cartografia um compromisso que, mais do que radical,
exige a fixação de um lastro poético, de uma configuração de pontos cardiais
que traçam o caminho do sujeito poético. Por isso, ela nos diz, nesse
compromisso de imortalidade, que marca o arranque do livro, assim: a metáfora
estigma-se no lastro/ dos Poetas/tão de manso”. A clareza do propósito
enuncia-se na primeira estrofe do poema, aludindo a um legado poético que
tresluz na metáfora, mas que é simultaneamente estigma ou cicatriz, e em que o
poético emergisse como sinal de santidade, na esteira da poesia mística de D.
Juan de la Cruz. A ideia de que o poético é também uma ferida essencial,
intacta, como disse dela António Ramos Rosa. A que não se fecha, revelando a
impureza do corpo, mas também a da própria linguagem, reflectindo essa
contaminação essencial do sujeito que se implica ele próprio enquanto matéria poética.
Nada disto parece ser alheio à poética da autora, que assume
referências explícitas e que se enovela com a escrita de Maria Gabriela
Llansol. Dela é herdeira, sobretudo no modo como trabalha e opera sobre a
linguagem, sem, no entanto, se colar ao texto llansoliano. É, antes de tudo,
uma inspiração sobre o seu próprio texto, como lastro que confere ao poema essa
espessura intertextual. Por isso, Gabriela Martins refere esse “engodo
gradual”, essa urdidura que o silêncio tece na matéria, em jeito manso, mas que
subverte e suspende as palavras, que as empurra contra o banal e desfaz os elos
da sua familiaridade. Comecemos justamente por aí: a sintaxe, que “desarruma” a
sucessão e a linearidade habitual de uma frase, levando-nos ao consolo da
identificação. Versos cortados, deslocamentos sintáticos, arrojos de quem não
se contenta com o verso simples e claro. A clareza, ela sim, há-de vir de um
outro qualquer lugar, como uma irradiação ou uma luz imanente que nasce da
metáfora. A imagem transforma-se no retábulo do tempo e da memória, em modo
coagulado de Ser, como “crispação”. Esta, como sabia Llansol, jorra disso que é
a “imagem-fulgor”, conceito que labora de forma latente nesta poética. Quer-se
a crispação dos sentidos para que o poema seja mais, muito para além disso, que
o mero exercício e jogo de palavras inócuo. A crispação nasce do avesso, já lá
iremos, do adverso que suspende o óbvio e o cliché, que suspende os sentidos
habituais do poema. Nasce a crispação desta outra forma de cindir o verso, de o
cortar, pela pontuação inusitada, os pontos antes das palavras (ou as
vírgulas), obrigando o olhar à suspensão. Porque o olhar acaba por tropeçar no
ponto que antecede a palavra sem explicação, obrigando a um gesto de respiração
outra, um novo modo de olhar para o alinhamento do verso e do seu sentido.
Como no poema da página 7, “Encontros com sabor a terra”, “(…)
leve/. Sussurro brando arquejante brado/em adiada espera” configuram um novo
ritmo a um poema que teria uma cadência fluída, não fosse a desinstalação
provocada pelo ponto, obrigando a uma paragem forçada, a um silêncio e a uma
suspensão da respiração, antes desse “sussurro brando”. Erótica alusão, na
minha leitura, nesse poema que alude à presença da mulher e da sua nudez, na
noite, ele impõe a paragem, provocando o efeito de crispação. Poema onde também
se fala da mutilação de corpos, remetendo-nos para uma outra crispação, já não
amorosa, mas a do seu inverso, a do ódio.
Se a ideia de crispação atravessa a obra de Gabriela Rocha Martins,
ela ganha uma outra dimensão, não apenas a da imagem que coagula o instante,
mas a da própria linguagem, subvertendo o poema através de deslocamentos
sintáticos, que sacodem os sentidos habituais e os clichés, recusando o
sentimentalismo de muita poesia contemporânea, operando por corte e suspensão,
utilizando como recurso a pontuação como técnica de corte e da própria
crispação da linguagem. Sob o signo da escrita de Maria Gabriela Llansol, sabe
que a crispação da linguagem no poema se arroga o gesto de suspeita a tudo o
que é familiar naquela, que não provoca o arrepio dos sentidos, face ao excesso
que constitui a própria linguagem e que não é dizível senão no silêncio de uma
outra que há-de vir. O poema é o espaço do porvir, dessa imanência que se
reclama no jogo da inocência do ser. Donde as alusões à demência de Hölderlin,
no poema da página 16, como essa experiência-limite de revelação da linguagem. Porque,
mais do que indigência, a poesia transporta a possibilidade da revelação do
ser, esse que nos aguarda na clareira do silêncio. Dessa crispação que advém de
um toque e de uma contaminação do Ser-Revelação, nessa estranheza essencial e
espantosa que percorre o mundo em canto celebratório. Como um magma
irresistível e que acontece no poema.
Maria João Cantinho