texto de Luís Serrano







O ACTO POÉTICO, METÁFORA DO NÃO

por Luís Serrano

Gabriela, por que teimamos em remar contra a corrente se não passamos de agricultores que avançam, modestamente embora,  [pel]a lavoura do rascunhar  [onde] medram os silêncios?
Nunca disseste tanto em tão poucas palavras, Gabriela.
Nós (os párias) levamos a poesia a sério que é como quem diz "levamos a vida a sério", isto é, estamos desde sempre (desde que nos conhecemos) apostados em dizer não. E ao assumirmos esse comportamento, não andamos muito longe de outros poetas que com outras palavras, disseram aproximadamente a mesma coisa.
Exemplo: Sophia disse [...] a poesia é a minha explicação com  o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.
Esse deve ser o ofício do poeta em consonância com os outros artistas: os das artes plásticas que escrevem noutra linguagem mas querem dizer a mesma coisa, os músicos que pregam notas nas partituras, os homens de teatro que fingem o próprio fingimento e dizem coisas com os dentes afiados, os bailarinos que dizem não à própria gravidade e atiram-se para cima, para o alto, já que como dizia o nosso José Gomes Ferreira, as aves quando morrem caem no céu, e os arquitectos esses construtores amigos da pedra, inventando abóbadas, colunas, janelas (sempre para dizer  não).
Essa palavra, esse monossílabo tem a força do murro e a leveza do beijo.
Devemos escrever e pensar poesia cultivando o deserto como um pomar às avessas tal como preconizava o grande João Cabral de Melo Neto.
Não queremos um mundo onde não haja árvores, não queremos um mundo onde a água não seja limpa, não queremos um mundo onde o ar não seja respirável.
Não a uma terra onde as armas substituem os frutos, onde as casas ardem ao amanhecer, casas onde as famílias criam os filhos à beira das hortas e dos gados debruçados sobre a erva, sobre o sustento.
Não queremos a morte despejada pelos aviões, pelos grandes contratorpedeiros, pelas mãos sujas do crime organizado .
Dizemos não porque esse é o caminho da poesia.
As árvores gritam sobre esse registo de água que vai marcando a marcha do tempo. As árvores dizem não porque o verde é a cor da vida, a cor da música que recusa a morte.
Ouço o grito dessas árvores, o seu gesto  sereno sobre a pele, a clorofila, os estomas quando o ar se precipita inteiro sobre o limbo dessas folhas que o outono há-de consumir.
Dêem-me árvores para um novo recomeço já o dizia o António Ramos Rosa, ele que no verso anterior do poema dizia: Mas estou cansado de recomeçar! Mas ele recomeçou e nós não temos alternativa: recomeçaremos também!
Não deixemos que os relógios parem à entrada dos túneis. Deixemos que o tempo se escoe, perpasse pelos labirintos da imaginação, se abra mansamente para a noite e para o dia.
Dizer não porque não é a flor mais antiga dos rios quando estes se lançam ao mar, agora que a montanha não é mais do que uma rocha dura pregada no céu e também (lá vou citar o Ramos Rosa outra vez) porque o que distingue o poeta é a sua capacidade de relacionar livremente (isto é, inventando) o que aparentemente não é relacionável.
Continua Gabriela, se possível, de mão dada com o Almutâmide, atravessando o rio Arade sob o aroma colorido dos laranjais de Silves.
Eu vou-me ficar por aqui mas deixo-te este recado do René Char retirado de À une sérénité crispée:
Au centre de la poésie, un contradicteur t'attend. C'est ton souvenir. Lutte loyalement contre lui.