1ª Recensão a "Inquietação"

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«[…] ele descia expectante e só por isso achava graça a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo cheios dessa importância de correr para o tédio que sabia domesticamente enfadonho […] A praça estava cheia parou frente aos isqueiros os mesmos de sempre que há anos se mantinham na mesma montra»
gabriela rocha martins, «Inquietações»

«Cercam-me as lojas, tépidas…Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes; […] esqueço-me a prever castíssimas esposas, que aninhem em mansões de vidro transparente»
Cesário Verde,


A editorial Minerva acaba de publicar uma recolha de textos “Conto & Poesia” que intitulou «Inquietações». Aí fomos encontrar um conjunto de trabalhos de alguém que nos últimos tempos tem dedicado uma boa parte da sua vida às letras portuguesas. Falamos de Gabriela Martins, actual Directora da Casa Museu João de Deus, organizadora exímia do Concurso Prémio Litterarius do Racal Club e permanente colaboradora deste jornal ( Terra Ruiva ) que nos habituou às suas constantes reflexões literárias.
Os três textos aí reunidos são reveladores de uma consciente inquietação humana. Filtram a vivência do dia a dia e oferecem-nos uma leitura do frenético quotidiano que nos consome minuto a minuto. Dão visibilidade a pedaços de vida com os quais nos identificamos claramente e que a cegueira contemporânea nos impede de os alterar. Gabriela Martins retrata-os como quem esculpe o barro, devolvendo-nos imagens buriladas do que o homem “escolheu” para VIDA - uma corrida contra o tempo - que lhe rouba exactamente o tempo que teria para a viver. À custa de um obsessivo quotidiano o SER foi, assim, escorraçado da sua habitação interior e foi levado pela corrente de uma não-vontade que se alojou na morada dos homens deste século.
A “5ª Sinfonia de Malher” obriga o leitor a rever-se como transeunte robotizado nas irremediáveis divagações quotidianas. É um texto que respira a plenos pulmões invadindo a cidade para lhe captar o cálido entardecer de mais um regresso a casa. Vive de uma ligação entre a pressa que cada um imprime no que julga estar a viver e a aparente indiferença dessa mesma cidade. Acompanhamos o viajante, que todos os dias percorre as mesmas vielas, onde tudo parece repetidamente normal, numa cidade que só na aparência estagnou, porque a agitação humana que com ele se cruza sorri, cumprimenta e troca estórias nos olhares ainda que iludida no tédio, pois não ousa, não arrisca, deixa-se ir.
Este texto assenta na matriz de um compasso, marcado por silêncios misteriosos, conseguido através de pausas físicas que asseguram a pontuação desta narrativa que vai desfiando quadros citadinos preenchidos de encontros e desencontros entre um homem e uma mulher. Ambos cumprem uma rotina quase alheia. Ele, enraizado na cidade, aproveita para captar a imobilidade de cenários que o percorrem como se o mundo se movesse e os cenários se repetissem irremediavelmente a cada percurso seu. Lembra-nos o deambular de Cesário Verde, ao entardecer, na Lisboa do século XIX.
Noutro texto, “O 3º elemento”, o tempo pressiona agora com maior rigidez o destino de um homem e de uma mulher que tal como piões se deixam manobrar no xadrez da vida. Surgem-nos traçadas por um surrealismo, dir-se-ia iluminado por bocejos realistas que chegam ao leitor, qual fita cinematográfica, onde, cada uma delas, à força de se evadir de um presente ameaçador, «tenta não pensar em nada.». Estas personagens parecem dar continuidade à vivência do texto anterior, mas agora trata-se de uma corrida desenfreada contra o tempo, o que as faz sentirem-se torturadas pela perseguição de imagens que se sobrepõem ao longo do dia e nos vão relatando outros tantos pedaços do quotidiano que obsessivamente teimam em materializar-se.
A “5ª Sinfonia” fecha a trilogia desse febril quotidiano que vem devorando este homem e esta mulher que não encontram tempo para o amor, pois o tempo escorre-lhes por entre os dedos da vida, até porque «o dia começou e mantém-se cinzento». Mas a natureza reflorirá « os ramos secos erguem-se às nuvens e a mim a outra aprumada verde grita a sua vontade de viver». E nem tudo está perdido, até porque o sujeito-quase-poético desloca-se do plano masculino para o feminino. Não será sempre no ventre de uma mulher que a esperança se renova?
Este último texto, apesar de nos oferecer um retrato a sépia de mais um entardecer, parece anunciar o encontro que fora desencontro nos textos anteriores. E surge então um momento de gradação surrealista « o homem pássaro .o novelo agita-se […] a música aumenta o bater da asa […] o olhar fixa-se na presa » que nos oferece uma dança heróica que se transformará no sensual encontro que “sabe sempre a pouco”
Desvendar a “Inquietação” contida nesta trilogia é re-construir as vozes interiores de homens e mulheres (sobre)viventes da cegueira deste século frenético que nos sorve até ao âmago. Não caberá no âmbito deste texto devolver por inteiro o significado das mesmas. Cada leitura a sua voz, o seu tempo, as suas limitações.
-Esmeralda Alves,
Mestre em Língua e Literatura Portuguesas
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