3ª sinfonia de Mälher

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recebeu o troco
e............ levantou-se lentamente............ tão lentamente quanto lhe era possível............ a fim de retardar o seu regresso ao calor da rua
não é que lá fora estivesse melhor............ antes a inércia de mudar de posição e a incerteza do tempo de espera
acendeu um cigarro............ começou a descer a rua enquanto as pessoas à sua volta obrigavam-no a pequenos desvios............ ávidas da rotina do dia a dia
não tinha............ porém............ importância porque ele descia............ expectante............ e só por isso achava graça a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo............ cheios dessa importância de correr para o tédio que sabia domesticamente enfadonho
a praça estava cheia............ parou frente aos isqueiros - os mesmos de sempre que há anos se mantinham na mesma montra - olhou os títulos dos jornais............ verificou que na esquina da loja de modas ainda lá estava a camisa que gostaria de comprar............ seguiu em frente............ parando em cada montra............. cumprindo o ritual de ver o já visto............ deleitando-se na confeitaria dos primeiros anos do séc. XX - nos bolos e na montra - olhando as armas que nunca pensaria usar............ vendo............ de soslaio............ o imobilismo de alguns comerciantes
virou à direita............ e subiu............ mais uma vez............ a rua de desesperantes esperas e desesperas
das escadinhas............ à esquerda............ saiu a miúda............ hesitou em dar-lhe a importância do costume............ mas o estado de alma permitiu-lhe um outro olhar............ valeu a pena............ as sandálias gastas............ as pernas soberbas – bem feitas – mesmo bem feitas............ aliás............ todo o corpo era bem feito............ não necessitando da saia apertada nos sítios errados............ ajustou o seu passo ao dela............ e sorriu à mudança de ritmo de andamento............ depois............ passaram a trocar os olhares nas montras............ e entre a brincadeira e o jogo............ de acelera e trava............ de montra-descarada-montra-impessoal............ foi-lhe descortinando o rosto de menina que não teve tempo de brincar............ as rugas que lhe haviam chegado............ o peito que terminava num estômago apertado por um cinto
pararam no largo............ olharam-se............ OLÁ-OLÁ............ e aquele longo olhar contou todas as estórias............ as contáveis e as outras............ despediram-se como amigos
o calor continuava............ em todos os lados............ mesmo estando à sombra e sendo 19h30
começou a descida para casa
é notável como a cidade pode oferecer o passeio conforme as necessidades
se tivesse seguido a rua dos eléctricos............ além de já ter chegado há muito tempo............ não teria sido crítico de moda e de arte............ nem teria pena da amiga que arranjara
pior............ tinha-se impacientado com a espera
subiu ao nono andar............ a casa estava naturalmente fresca............ e foi bom abrir as janelas para deixar entrar o sol e o rio
luz............ água............ silêncio
acendeu um cigarro e correu para o duche
deixou a água correr............ ao longo do corpo............ primeiro sem ordem............ depois em escolha metódica............ curva a curva............ dos pés à cabeça que inclinou em ângulo certo de modo a incidir no pescoço............ no peito............ no estômago............ nas ancas............ nos pés............ de novo............ a repetição dos jogos de água e os sentidos que se apuram
esqueceu a passagem do tempo............ mas não a suficiente para precisar de um pouco de música............ agarrou a toalha e serviu-se de wiskhy
estendeu a mão............ tirou o 3º andamento............ 5ª sinfonia de Malher............ e deixou-se ficar............ quieto.......... oitava a cima............ garganta a baixo
brincava com os dedos e com o copo............ quando o telefone tocou
o ciclo fechava-se............ e ele viu............ sentada a seu lado............ a imagem que guardou o dia inteiro
chegava de modo breve e seguro............ com aquele sorriso nos olhos que dizia............ ser bom amar
atendeu............ naquele estender de mão............ cingir de corpos – curiosamente............ mesmo nos mais íntimos encontros............ mesmo nesses............ nunca haviam assumido qualquer compromisso – e no falar das generalidades diárias
era bom ouvi-la
mesmo quando não tinham coisas novas a dizer............ ficavam a recordar os instantes de ontem só pelo prazer de estar juntos
era noite escura quando se despediram
desligou o telefone............ levantou-se............ vestiu-se............ comeu qualquer coisa............ e saiu
Ana esperava-o............ a rotina............ o dia a dia............ o tédio doméstico


-amadeo bocchi. .
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