Festival Literário Internacional de Querença











A EVOCAÇÂO DE DEUS NA POESIA

“ars longa ,vita brevis”


.1 .introdução

tema assaz interessante e controverso este que me foi proposto pela organização do 1º FLIP ( Festival Literário Ibérico de Poesia ) ,a realizar neste segundo fim de semana de Agosto ,na aldeia de Querença ,Loulé ,Algarve sulino ,quente e beira-serra
.interessante ,porque me espicaça .controverso ,na medida em que  não acredito em deus .então ,como falar de algo que ,para mim não existe? ou ,a existir ,existe como criação do homem – face à sua impotência ,à sua fragilidade e à sua busca do eterno - e não o inverso .mais ,como definir uma irrealidade ( será que é possível fazê-lo? ) .como falar do nada ,já que deus ,não existindo é o vazio ,o inexistente .um buraco
como ,então ,sair deste buraco ,se ele não existe? como falar do mesmo ou tentar uma definição plausível para algo que ,de facto ,não pode ser definido?
posso afirmar-vos que não me foi fácil “descalçar esta bota” ,mas como sempre gostei ( e muito ) de desafios ,vejamos ,como tentei abordar ,logicamente ,o tema proposto
.sim ,porque só através da Meta-História ,isto é ,das fontes da História ligadas ao divino ,da Doxologia e da Filosofia ,consigo falar-vos ,mesmo de um modo sumário ,deste tema
.e eis ,como descalcei a “referida bota”…..


.2 .o transcendente
.2.1 . “ars longa ,vita brevis”

“Ars longa, vita brevis” é ,sumariamente ,a fórmula que define a Arte na brevidade do tempo e com a qual inicio a minha intervenção no 1º Festival Literário Ibérico de Poesia .daí que ,para muitos Poetas ,o fim da Arte seja , primeiro ,a busca da eternidade ou a comunhão com deus .William B. Yeats, um dos maiores poetas da língua inglesa do século XX ,inscreve  no “tempo da arte” o desejo do eterno, ao expressar a sagrada vocação humana no encontro com deus.
“Consumi meu coração; enfermo de desejo
E preso a um animal agonizante
Ele não sabe o que é; e levai-me
Ao artífice da Eternidade.”
deste modo ,a procura do eterno ,para o Poeta ,reveste-se de um carácter excessivo ,tanto quanto essas mesmas palavras nascem da sua experiência de comunhão com deus
para outros ,no entanto ,o fim da arte ou a procura na criação artística não é ,apenas ,a comunhão ,mas sim  o louvor
isto é .o Poeta sabe que deus existe ,por isso louva-o e o louvor a esse deus eterno está patente em toda a Poesia cristã ,através dos séculos ,bem como o louvor pela manifestação bondosa das dádivas de deus ao homem ,no espaço e no tempo .é que a poesia cristã trata da Meta-História ,isto  é ,das fontes da História radicadas no Eterno ,e da manifestação do sagrado e do divino entre os homens
.a vocação do louvor ,ou seja ,a tendência incontornável da doxologia ,deve ser o conteúdo da poesia cristã
.aquém dos belos poemas bíblicos dos Hagiógrafos (os Salmos, o Cântico dos Cânticos, etc) ,o poeta alemão Rainer Maria Rilke dá-nos também ele uma ideia do tom dessa milenar vocação
.o talento do poeta que se exprime ,na sua poesia ,sob este registo e o seu destino ,impede-o de deixar de louvar e ,sem louvor ,a poesia cristã não poderia existir
.em terceiro lugar ,gostaria de chamar a vossa atenção – longe de esgotar o tema que daria “pano para mangas” – para o que denomino “a poesia do arrependimento” de certos Poetas ,cuja vida e a literatura ,acto contínuo ,consideram longe do verdadeiro viver cristão ,caso ,óbvio de Manuel Maria Barbosa du Bocage mas que ,no entanto ,se inserem nesta temática ,tanto pela beleza dos seus poemas quanto pela beleza - porventura maior – da sua confissão ,enquanto pecadores ,até porque ,a maioria, destes grandes Poetas são muito mais Humanistas e homens de seu século ,do que cristãos, na verdadeira acepção do termo
.assim ,e de uma forma sucinta ,a fim de enfatizar a Poesia lusa ,de cariz ,marcadamente ,cristão ,gostaria de referir alguns Poetas portugueses  - e limito a minha abordagem a seis séculos ,isto é ,do séc. XV ao séc. XXI .os nomes que menciono ,não a esgotam ,o que ,desde já me penitencio ,mas ,apenas ,procuram relevar  alguns dos nossos “inolvidados ancestrais” e outros contemporâneos que ,apesar de não me identificar com eles nesta temática ,os admiro ,sabendo ,à partida que poderia evocar muitos ou outros .todavia ,estes são os que ,ora ,recordo:
Gil Vicente (1465-1536)
Diogo Bernardes (1520 - 1605)
Luís de Camões (1524 –1580)
Agostinho da Cruz (1540 – 1619)
Balthesar Estaço (1570 - 16--?)
D. Francisco Manoel de Melo (1608 – 1667)
Jerónimo Baía (1620/30-1688)
Frei António das Chagas (1631-1682)
Leonor de Almeida Portugal (vulgus Marquesa de Alorna)
(1750 – 1839)
Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765 - 1805)
Alexandre Herculano (1810-1877 )
João de Deus (1830 – 1886)
Antero de Quental (1842 – 1891)
Gomes Leal (1848 - 1921)
Fernando Pessoa (1888 – 1935)
Florbela Espanca (1894 – 1930)
Fernanda de Castro (1900 - 1994)
José Blanc de Portugal (1914 - 2001)
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 -2004)
Sebastião da Gama (1924 - 1952)
Ruy Belo (1933 - 1978)
Maria Teresa Dias Furtado (
Maria Azenha ( 1945 -
José Augusto Mourão (1947 - )
Samuel Pinheiro (1956 - )
José Tolentino de Mendonça (1965 - )
Daniel Faria (1971 – 1999)
Ruy Ventura (1973 - )
Samuel Pimenta (1990 -

.2 .2 .”a epifania como obra de arte”

destaco por fim ,se bem que de uma forma breve ,porque o tempo assim me obriga ,a “Carta aos Artistas” ,escrita em 1999 ,pelo Papa João Paulo II ,rica em reflexões filosóficas sobre as relações entre Deus ,a beleza e a arte  .já na primeira linha ,em dedicatória ,chama à obra de arte "epifania"- isto é ,manifestação ,pela beleza ,de deus
.e começa falando da criação artística como participação do divino para concluir que "Deus chamou o homem à existência ,dando-lhe a tarefa de ser artífice.” na «criação artística» ,mais do que em qualquer outra atividade ,o homem revela-se como «imagem de Deus» e realiza essa tarefa ,em primeiro lugar ,plasmando a «matéria» para ,de seguida ,exercer o domínio criativo sobre o universo que o circunda .assim ,o artista divino ,primeiro ,transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao artista humano ,chamando-o a participar do seu poder criador ,com as devidas distâncias ,obviamente
.participação ,que é participação também no bem e no ser .nesse sentido ,João Paulo II estabelece a proximidade entre bondade e a beleza ,e ,a confrontação entre o bom e o belo gera sugestivas reflexões .em certo sentido ,a beleza é a expressão visível do bem ,do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza .assim o entenderam os Gregos ,quando, fundindo os dois conceitos ,criaram a palavra :«kalokagathía» ,ou seja ,«beleza-bondade» .e ,ainda ,a este respeito ,escreve Platão: «A força do Bem refugiou-se na natureza do Belo»".
assim ,não é de estranhar que a Filosofia da Arte de S. Tomás de Aquino - como aliás todo o seu pensamento - repouse sobre esse conceito fundamental: o de participação (participatio) .participar ,em sentido transcendente ,é ter em oposição o ser
a Criação é o acto no qual é dado o ser em participação .logo ,tudo que é , é bom
.no pensamento de Tomás de Aquino ,a contemplação - também a propiciada pela arte - é a forma mais profunda de "consecução de um bem criado", prefigurando a glória definitiva .tais considerações ,que expressam o núcleo profundo do pensamento filosófico ,estão ao alcance da intuição do conhecimento comum ,e ,assim ,por mais difícil que seja a filosofia de Tomás de Aquino ,ela nada mais é do que a estruturação do que já era sabido (talvez de um modo inconsciente) pelo bom senso do homem vulgar
.palavras que vêm confirmar as de João Paulo II: "Queridos artistas, como bem sabeis, são muitos os estímulos, interiores e exteriores, que podem inspirar o vosso talento. Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frémito daquele «sopro» com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação. Presidindo às misteriosas leis que governam o universo, o sopro divino do Espírito Criador vem ao encontro do génio do homem e estimula a sua capacidade criativa. Abençoa-o com uma espécie de iluminação interior, que junta a indicação do bem à do belo, tornando-o apto para conceber a ideia e dar-lhe forma na obra de arte. Fala-se então justamente, embora de forma analógica, de «momentos de graça» ou “inspiração”, porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experiência do Absoluto que o transcende".

.3. o imanente

em contrapartida ,porque a dialéctica assim o obriga ,procuro agora uma outra abordagem ,não pelo transcendente ,com o qual ,obviamente ,não me identifico ,mas pelo imanente ,tendo como ponto de partida ,um poeta cuja obra me fascina e  que também me serve de matriz – Miguel Torga
.para Torga ,a criação ,o mais belo e o mais trágico dos ofícios ,ou a possibilidade de um homem descer ao mais fundo de si mesmo ,é um dom inacto ,e ,a sua Poesia apresenta-nos três grandes linhas de rumo que ,resumidamente ,poderão ser enumeradas do seguinte modo:

 1ª-  a problemática religiosa:
em toda a obra de Miguel Torga verificamos que o Poeta ,ao negar Deus ,não nega a sua existência .nega ,sim ,a representação que os homens dele fazem .o que perturba Torga é o facto de não existir um Deus humano e iminente
.assim ,nele ,e de forma telegráfica ,a problemática religiosa manifesta-se:
- no desespero religioso – conflito entre o divino e o terreno
- na revolta contra Deus, sem ,todavia ,assumir qualquer ateísmo
- na indecisão face ao absoluto, ao sagrado e ao divino
- na negação do transcendente que lhe perturba a razão
- na negação de deus/deuses para melhor afirmar o Homem
- a esperança e a desesperança surgem como uma expressão de um conflito íntimo que se desenvolve no seu interior
- na necessidade de buscar forças e tomar consciência no destino trágico e limitado do Homem
- a descrença e a revolta contra uma divindade transcendente, parecem ,no entanto ,reflectir a angústia e o desespero do Poeta enquanto homem
- no constante e inquieto monólogo que tem com deus
    
2. – o desespero humanista:
do mesmo modo ,o seu desespero humanista repercute-se no apego aos limites terrenos e à revolta espontânea contra esses limites, num profundo sentimento de solidão e experiência de sofrimento, na rebeldia contra os limites do homem e na busca do caminho da esperança e da liberdade .o humanismo em Torga surge na sua constante procura do verdadeiro sentido da existência humana que nunca consegue atingir a sua plenitude ,o que ,evidentemente ,lhe traz ,uma enorme angústia .Torga não se limita a conhecer o que lhe está próximo, mas sim tudo o que lhe é destinado ,isto é ,o sentimento doloroso pela condição do Homem – O Orfeu Rebelde
resumindo:
é bem visível ,na obra de Miguel Torga
 - a preocupação com a autenticidade criadora
-  a tristeza por não conseguir iluminar a sua poesia
- o sentimento de que o acto poético é indissociável de um certo comportamento que aproxima o homem da ordem cósmica em que se integra

3. – o sentimento telúrico:
apologista de um sentido terreno e instintivo ,a terra ,para Miguel Torga ,traduz o local concreto e natural do homem ,a sua inspiração genesíaca ou o mito de Anteu e, deste modo ,o Poeta afirma que o homem deve unir-se à terra e ser-lhe fiel ,pois a terra surge como o ventre materno
.Torga personifica-a como uma mulher disposta à fecundação .é ,simultaneamente ,a voz da terra e também a voz de um povo rude e melancólico ,mas de carácter firme e nobre .a sua obra é um todo literário e humano .só na ligação à sua terra ,Torga se sente retemperado da luta que trava com deus e contra o seu destino de homem ,e ,o seu sentimento de identificação com a mesma ,leva-o a cantar o mundo agrário e exprime-se no seu apego telúrico ,na sua fidelidade ao povo, na sua consciência de português, de ibérico, no espírito de comunhão universal
em suma:
para Miguel Torga
- a terra é o lugar de realização do ser humano e da ligação à génese ( inspiração genesíaca )
   - na terra fértil, a fecundação permite a vida do Homem que se reproduz na busca de novas vidas
   - o Homem deve ser capaz de realizar-se no mundo, de unir-se à terra e de ser-lhe fiel para que a vida tenha sentido  
- a escrita serve para projectar as suas preocupações como ser humano e as suas limitações

 .nele há um sofrimento magoado ,feito desassossego que tanto permite a esperança como conduz ao desespero

.4. um pouco de mim

e ,deste modo ,simples e despretensioso ,deixo-vos com um poema que é a minha resposta ao tema que me foi proposto

será possível a reparação dos estragos?

*
um balouçar no vento procura silenciar a voz do falo
enquanto a dança das equações tece o manto
de Ariadne onde os arcanos encenam
o funeral das Bacantes e os
cáusticos mortais
embebedam-se
cobertos pela patena
do verbo .tudo se consome
ou traduz num gesto casuístico
quando de novo as mãos se sobrepõem
à ausência e deus abandonado num logro (con)sentido
volta a semicerrar os olhos permitindo à Poesia a reparação
dos estragos



Gabriela Rocha Martins
,Agosto de 2016.




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Confissões de uma voz comprometida com a Poesia



Porque há Festivais ,encontros ,lugares ,dias e horas que deixam impressões digitais ,hoje olhei para os meus dedos e verifiquei que tinha perdido as minhas.
Perdi-as ,algures ,por aldeias serranas ,quando convidada para participar no I Festival Literário Internacional de Querença ( FLIQ ) ,ou
talvez as tenha deixado à guarda dos Amigos ,Patrícia de Jesus Palma e da Fundação Manuel Viegas Guerreiro que ,apesar da minha não presença física ,por motivos de doença ,permitiram um diálogo ,íntimo e cúmplice ,entre esta amante do Verbo e da Palavra e todos os Participantes.
Através de voz alheia , confessei-me ,às  Mulheres e Homens que na Ibéria vão dissecando o Ser-em ,irremediavelmente ,comprometida com a Poesia ,a Escrita e o Mundo.
Deixei lastros de presença na minha ausência física e em Querença ,entre Poetas ,Performativos ,e demais Criativos ,depositei ,com a alegria de quem se apresenta ,aberta mas comprometida ,o meu humilde contributo escrito .Tentei ,ao meu jeito rebelde  e provocador ,celebrar a Palavra e comungá-la em todas as suas formas - dita ,escrita ,subvertida ,dançada ,exposta ,encenada ,discutida…- sob a batuta ,brilhante e atenta ,dos Organizadores do Evento.
Disseram-me ,em cochicho de ouvido e eu não tive nem tenho dúvidas ,que foram 3 dias de Agosto de 2016 que deixaram saudades “e que a aldeia de Querença foi raiz e sombra de um diálogo contínuo ,animado por todas as vozes que ali se reuniram ,pela primeira vez”.
Aguardemos ,expectantes ,os dias 12 ,13 e 14 de Maio de 2017 ,porque há Festivais ,encontros ,lugares ,dias e horas que deixam impressões digitais….



Gabriela Rocha Martins
,Março de 2017