Diálogos ,Epístolas Inertes







à laia de prefácio
,algumas notas breves e soltas



ao contrário do que o Vicente esperaria ,não escreverei o prefácio deste seu livro .não por espírito de contradição ,antes ,porque não concordo ,de todo ,com prefácios .estes pressupõem ,à letra ,fazer antes … não é o caso .o livro foi feito//escrito - ( e muito bem ) - pelo Vicente Ferreira da Silva .todo o mérito é dele .eu ,simples leitora ,reagi aos poemas ,à posteriori ,e só ,à posteriori ,teci algumas notas ,breves e soltas ,partindo do pressuposto de que não sou crítica literária .sou – tão só e como gosto de me definir – uma vagamunda da palavra – que adora desafios ,razão porque aceitei ,sem qualquer hesitação ,o repto lançado pelo Vicente
fi.lo, primeiro ,como amiga ,segundo ,como leitora e terceiro ,como provocadora inveterada

assim………
não é fácil falar sobre algo que se é ,sem explicação – AMIGO .porque os amigos são .e ,são.no tanto mais ,quanto os “mundos” se identificam num “tu” ,em que cada um se medeia no vazio que ,em dado momento ,se abre ,no mundo paralelo de interesses ,ao outro ,numa ilimitação cúmplice
como leitora ,parti do pressuposto de que o leitor “escreve para que seja possível” ,como , um dia ,escreveu Eduardo Prado Coelho
e ,fá.lo ,ou de passagem ,sem chegar a repousar os olhos sobre o texto//poema ,esbaforido ,porque tem pressa de chegar adiante ,ou vagarosamente ,elegendo as palavras que emergem ,dando.lhes o brilho e a cor que lhes convêm
cada leitor é ,à partida ,alguém que se faz à volta do isolamento da leitura ,subjacente aos corredores dos conventos medievais - quando a leitura se fazia na diversidade dos corações em prece - sendo ,no entanto ,capaz de “inter-legere” ,isto é ,escolher aquilo que vale a pena ser retido
é ,então ,que “o leitor escreve para que seja possível
em contrapartida ,há ,para alguns autores ,algo de transcendente no acto de criar ,sobretudo ,no acto da escrita ,isto é, uma cumplicidade entre o Criador/maior – Deus e o Criador/mortal – Homem ,criado à imagem e semelhança do primeiro
admitindo ou não o lado transcendente do acto criativo ,certo é que a leitura entende.se ,sempre ,à posteriori ,e ,desta forma ,a inteligência individual ,do criador//autor ,abre.se à inteligência colectiva, dos leitores ,e, ao operar um ser orgânico ,ou o ”corpus” elegível ,o autor ,com a sua obra ,fortalece uma dualidade entre ele e o leitor ,isto é ,entre quem escreve e quem lê
o autor ,torna.se ,então ,naquele que aumenta o mundo e que ,ao fazê.lo ,se autoriza ,e que ,apesar de preso pela paixão ,se disponibiliza para a inteligência
é ,ainda ,o pólo executor da comunicação ,ao possibilitar que as mãos se toquem: eu ( autor ) ,tu ( leitor )
daí uma cumplicidade perplexa – sussurrada ,secreta ,rasurada e/ou explícita - que se estabelece ,entre o autor ,um eterno operário aprendiz ,e o leitor ,o garante do valor das palavras ,quando o livro é muito mais do que ele próprio ,ou seja ,quando o eu do escritor encontra o tu do leitor ,em perfeita harmonia ou exímia provocação
a obra ,e, neste caso particular ,”Diálogos ,Epístolas Inertes” institui.se no seu espaço literário ,como referia Blanchot ,em que os tempos se enovelam de uma forma diferente e em que o próprio tempo de um poema se desfaz .cada poema não constitui o fim do tempo ( entendido como tempo cronológico ),e é ,precisamente ,nesse espaço ( sempre reversível ) de tempo ,que forma o corpo do poema ,que a Utopia desemboca ou como convocatória das memórias ,ou como recuperação de gestos perdidos ou como invocação sublime
Vicente Ferreira da Silva ,em “Diálogos ,Epístolas Inertes” ,fazendo o inventário possível da palavra//poema ,já que nenhuma palavra existe que não seja eco de outra ,ousa provocar.nos ,subconscientemente ,com várias propostas e ,por isso ,em “Diálogos, Epístolas Inertes” encontramos dois processos de aceleração distintos:
- por um lado ,a ideia de um amor cósmico ,que tudo arrasta .é a dimensão caudalosa da escrita de VFS ,em que os versos ,rolando como um rio ,se depositam no mar mais vasto ,provocando ,em cada um de nós ,emoções//reacções várias - por outro lado ,as questões do ritmo e do tempo, que lhe são ,particularmente ,caras ,ao remeter ,por exemplo ,para a infância da leitura ( poema “Vida” ,pág.8 ;”Infâncias”, pág. 55 ) ,isto é ,para a génese ,como se o acto de escrever mais não fosse do que antever ,no próprio corpo ( “Privacidade” ,pág. 6 ),a história de outros corpos ( “Soubesse eu que eras ténue” ,pág. 12 ;”Ilusões” ,pág.39 )
os poemas fluem num movimento [de]mente ,e, o autor ,lúcido ,pressente.o ,concentrados em presenças e ausências ( “Ausência” ,pág.21 ) ,cuja intensidade é tão profunda que a própria escrita é impelida pelo ritmo e pelo rito ,ou espelhada na ternura implícita do que está escrito ( em “Estátuas” ,pág.46 ;”Estilhaços” ,pág.49 ) ,ou ,ainda ,como lugar de criação ( “Inatingível” ,pág. 44 )
tudo parece obscuro e claro ,matemático e ilógico ,pré.determinado e audaz ( “Alfa” ,pág. 42 ;”Ómega” ,pág. 45 ) ,mas ,tudo o que possa parecer ,fica sempre aquém ,na medida em que há um texto subreptício que se impõe ,do primeiro ao último verso .veja.se ,a título de exemplo ,o que pode parecer uma contradição – os dois últimos poemas .primeiro ,Vicente fala.nos da morte ,para depois escrever a peregrinação
em outros poemas ,VFS procura projectar ,qual arquitecto ,a casa própria da escrita ( “Lugar-Casa” ,pág.28 ) convertendo.a em pura simbologia ( “Símbolos” ,pág. 5 ) ,expondo.se ,de quando em vez ,como recorrente da palavra ou do verso ,únicos ,numa interioridade exterior consentida a si próprio
além disso, o tempo, mas como hipótese messiânica ,encontra.se ,bem patente nos dois últimos poemas ( “Morte” ,pág. 60 ;”Peregrinação” ,pag. 61 ),já anteriormente referidos ,reconvertidos na progressiva inevitabilidade dos signos
em suma ,“Diálogos ,Epístolas Inertes” constitui o diálogo permanente entre o autor e Vicente Ferreira da Silva ,ou a carta ,ainda por escrever ,entre o autor e o leitor

é tempo de terminar
com alguma dificuldade ,confesso!
tenho ,por isso ,de capacitar.me ,acalmadas as águas insubmissas ,que isto não é mais do que um livro ,onde o Vicente se escondeu e onde esconde tudo o que somos – sonhos ,realidades ,lugares ,fantasmas ,signos ,reflexos - tudo o que faz um livro ,porque ler – esta a minha provocação final – faz de qualquer livro o que um livro não é :coração
Diálogos ,Epístolas Inertes” ,porém ,só se suspende no limiar de um último acto – quando eu e tu ( leitores saciados ) levantarmos os olhos ,tirarmos os óculos e fecharmos o livro ,se bem que …………

“…….a possibilidade continua a sê.lo. em epístolas inertes!”


-gabriela rocha martins,
setembro de 2010.